O Grupo Vegas Turbo ( nome fictício ), uma holding brasileira com atuação nos setores de logística, agronegócio e distribuição de combustíveis, decidiu em 2017 unificar seus sistemas de gestão empresarial adotando o SAP ECC. O projeto era estratégico e visava padronizar processos em toda a cadeia operacional. A escolha pelo SAP foi conduzida pelo time de compras, com apoio jurídico institucional e validação técnica da área de TI. O contrato incluía licenças perpétuas com manutenção anual e contemplava 950 usuários do tipo Professional, 200 Developer, além de pacotes de adicionais para RH, folha de pagamento e gestão de armazéns, baseando-se em métricas como número de usuários e transações.
Quatro anos após a implementação, uma nova gestão de TI resolveu revisar o uso efetivo das licenças. O cenário encontrado revelou uma série de distorções graves. Cerca de 400 usuários utilizavam o sistema de forma compatível com licenças Professional, mas quase 180 atuavam apenas em tarefas operacionais básicas, que poderiam ser executadas com licenças limitadas ou do tipo named user. Os pacotes adquiridos para folha de pagamento estavam subutilizados, assim como os módulos de logística, o que não impedia que a empresa continuasse pagando manutenção anual integral sobre eles.
Para agravar o quadro, uma solução móvel desenvolvida para motoristas da operação logística, que consumia dados da base SAP via API, foi considerada pela SAP, em uma auditoria, como acesso indireto não licenciado. Após auditoria, a fornecedora notificou o grupo com uma cobrança de R$ 1,4 milhão em valores retroativos, com base na geração de documentos por sistemas externos. O contrato original, mal estruturado, não previa cláusulas de reclassificação de licenças nem mecanismos para substituição de pacotes não utilizados através de créditos ou similares. Tampouco havia qualquer proteção contratual quanto ao risco de acesso indireto.
Com o fim do suporte ao ECC previsto para 2027, o grupo recebeu uma proposta da SAP para migrar para o modelo RISE with SAP, em regime de assinatura. A promessa era de maior flexibilidade, redução de riscos e inclusão de suporte e infraestrutura. No entanto, a nova proposta aumentava o custo em mais de 40% em relação ao orçamento de TI da empresa para os anos seguintes. Pior: as licenças já adquiridas não seriam aproveitadas como crédito, e a assinatura exigia compromisso mínimo de cinco anos com cláusulas que inviabilizavam renegociação.
O Grupo Vegas Turbo descobriu da pior forma que o licenciamento SAP não é um ato pontual, mas um processo contínuo que exige preparo técnico, comercial, negocial, visão jurídica e acompanhamento estratégico. O contrato não foi o problema, o problema foi tudo que ele não dizia, tudo que foi negligenciado, e tudo que poderia ter sido antecipado se houvesse governança.
O que está por trás do modelo de licenciamento SAP
O licenciamento SAP é um dos mais complexos e dinâmicos do mercado de tecnologia corporativa. Sua estrutura evoluiu ao longo de décadas, acompanhando as transformações da própria SAP como empresa. Nos anos 1990, a fornecedora consolidou o modelo de “named-user licensing”, cobrando por usuários nomeados e módulos funcionais. Essa lógica perdurou por muito tempo e estruturou a base de contratos perpétuos com manutenção anual.
Com a chegada do S/4HANA e a migração para a nuvem, novos modelos surgiram. O tradicional contrato perpétuo passou a conviver com ofertas por assinatura, baseadas em pacotes completos que incluem licenciamento, suporte e infraestrutura, como no RISE with SAP. Porém, essa evolução não tornou o licenciamento mais simples. Pelo contrário: o aumento da complexidade tecnológica e a crescente integração entre sistemas tornaram o ambiente contratual mais arriscado e menos previsível.
Além dos usuários nomeados, a SAP cobra separadamente por “packages” (módulos com métricas específicas, como número de documentos, volume financeiro processado ou quantidade de núcleos de CPU). O contratante precisa entender o que cada pacote realmente entrega, como é medido e qual o impacto de uma eventual expansão de uso. Muitas empresas não dominam essa estrutura e acabam contratando pacotes desnecessários ou em volume superior ao necessário, gerando o já conhecido problema do “shelfware”: licenças pagas que não são utilizadas. No ambiente RISE, por exemplo, isso, agora, aparece através do controle das FUE ( Full Use Equivalent).
Outro ponto crítico é o acesso indireto. Com a massificação de APIs, integrações com apps, plataformas de terceiros e dispositivos móveis, a fronteira entre uso direto e indireto se tornou fluida. Em resposta, a SAP introduziu o modelo de “Digital Access”, cobrando não mais por usuários, mas por documentos gerados por sistemas externos. Essa mudança, embora traga mais previsibilidade, exige rastreabilidade técnica e monitoramento detalhado, sob pena de exposições inesperadas durante auditorias.
A diferença entre os modelos on-premise e cloud vai muito além da forma de pagamento. No modelo perpétuo, a empresa tem mais controle sobre o ambiente, define seus ciclos de atualização e pode operar com autonomia. Já no modelo por assinatura, a operação depende da SAP, incluindo sua infraestrutura, roadmap e suporte. Encerrar a assinatura significa, na prática, perder o direito de uso, o que reforça a dependência tecnológica do fornecedor.
Tudo isso exige uma abordagem mais madura. Licenciamento não é um tema técnico, nem apenas jurídico, é um tema de governança corporativa.
Significa ter controle sobre métricas de uso, compreender cláusulas contratuais com profundidade, envolver as áreas de negócio na definição de perfis de usuários e manter uma rotina de revisão, reclassificação e negociação contínua com o fornecedor. Exige visão estratégica sobre a evolução da arquitetura tecnológica da empresa e sobre os compromissos assumidos em contratos longos, muitas vezes irreversíveis.
Negociar bem com a SAP não é apenas conseguir um desconto inicial ( como muitos negociadores comemoram ao receberem descontos generosos na compra inicial). É entender como as licenças vão evoluir com o negócio, como os riscos de acesso indireto podem ser mitigados, como os pacotes são medidos e como as renovações impactarão os orçamentos futuros. É antecipar-se ao encerramento do ECC e às armadilhas contratuais da nuvem. E, sobretudo, é compreender que, quando se trata de SAP, o que está em jogo não é só tecnologia, é a continuidade, a escalabilidade e a previsibilidade do seu negócio.
Em outras palavras, negociar com a SAP é proteger o seu orçamento, a sua operação e a sua capacidade de evoluir sem surpresas. Cada detalhe do contrato influencia diretamente no custo total de propriedade, na flexibilidade para mudanças futuras e no risco de exposição a cobranças inesperadas. Quem domina o licenciamento transforma um potencial passivo em vantagem competitiva; quem ignora, abre espaço para desperdícios milionários e perda de controle sobre a própria tecnologia.
Bons Negócios a Todos.
O tempo de mudar está passando….
*Por Reges Bronzatti.