A recente decisão dos jornais japoneses Nikkei e Asahi Shimbun de processar a startup norte-americana Perplexity AI inaugura um capítulo crucial no embate entre inovação tecnológica e proteção do jornalismo profissional. Em petição apresentada ao Tribunal Distrital de Tóquio em 26 de agosto, as companhias acusam a empresa californiana de copiar e armazenar seus artigos sem autorização, burlando inclusive medidas técnicas de bloqueio como o robots.txt. No comunicado oficial, as editoras afirmam que a conduta da Perplexity configura “um uso não autorizado de artigos de notícias que mina a base da democracia” (Asahi Shimbun, 26/08/2025). Essa escolha de palavras não é casual. Ao denunciar um risco democrático, as editoras sublinham que a disputa ultrapassa a esfera empresarial para atingir valores essenciais à sociedade.
A ação busca indenização de 2,2 bilhões de ienes cada, cerca de 15 milhões de dólares, e a exclusão imediata dos conteúdos das bases da Perplexity. O cerne da acusação é que a startup pratica “free riding em larga escala” sobre o trabalho de jornalistas, apropriando-se da produção intelectual sem contrapartida econômica. É nesse ponto que a discussão adquire relevância global. Até que ponto o treinamento e a operação de sistemas de inteligência artificial podem se amparar em obras jornalísticas protegidas sem autorização prévia?
A Perplexity, fundada em 2022 em San Francisco, construiu uma base de mais de 30 milhões de usuários oferecendo uma experiência distinta dos buscadores tradicionais. Seu modelo apresenta respostas sintéticas, acompanhadas de citações, mas sem redirecionar o leitor aos veículos originais. A empresa já celebrou acordos de compartilhamento de receita com veículos como Time e Der Spiegel, mas enfrenta ações de alguns dos principais jornais do mundo, incluindo o New York Times, a BBC e o Dow Jones. O Financial Times, também parte desse debate, observa que “o modelo de negócios da Perplexity depende diretamente do acesso a conteúdos jornalísticos produzidos por terceiros”.
O caso japonês ecoa uma preocupação que também já chegou à Justiça brasileira, ou seja, não se trata de uma disputa localizada, mas de um movimento global pela preservação do valor econômico e simbólico da notícia.
A questão central, para juristas e editores, reside no equilíbrio entre o avanço tecnológico e a proteção autoral. Não há dúvidas de que sistemas como a Perplexity oferecem eficiência ao usuário final, mas o preço oculto pode ser a erosão das condições de sustentabilidade do jornalismo profissional. O próprio comunicado das editoras japonesas adverte que “a apuração e a produção de notícias exigem tempo e investimento, e se esse esforço for explorado gratuitamente, a base econômica do jornalismo se desmorona” (Asahi Shimbun, 26/08/2025). A advertência dialoga com a realidade brasileira, em que redações enfrentam cortes e pressões econômicas justamente quando a desinformação digital se prolifera.
Do ponto de vista jurídico, o caso japonês reforça a urgência de balizar as práticas de IA em relação ao direito autoral. O uso de obras protegidas para treinamento de modelos abre um campo cinzento, com discussões sobre fair use nos EUA e exceções limitadas em legislações de outros países. Para o Brasil, a jurisprudência internacional pode servir de guia, mas será inevitável adaptar soluções às particularidades locais, sobretudo diante do papel constitucional da liberdade de imprensa.
Não se trata, portanto, de negar a inovação. O desafio é criar mecanismos para que ela se dê de forma justa, preservando tanto o incentivo ao desenvolvimento tecnológico quanto a remuneração dos que produzem conteúdo. Em outras palavras, a IA precisa aprender a conviver com os direitos autorais, e não a se alimentar deles em silêncio. O julgamento no Japão poderá estabelecer um precedente decisivo. Como bem resume o The Times, “o caso testará se a promessa da inteligência artificial de expandir o acesso à informação pode sobreviver sem desrespeitar aqueles que a produzem”.
Este é um momento estratégico. O Direito brasileiro será chamado a enfrentar disputas semelhantes, e será preciso construir soluções equilibradas entre inovação e proteção do trabalho jornalístico. O caso japonês demonstra que a batalha judicial não é apenas sobre cifras milionárias, mas sobre a própria sobrevivência de um modelo de informação comprometido com a democracia. Se a verdade continuar a ser produzida, alguém terá que pagar por ela, e esse alguém não pode ser apenas o jornalismo em sua ruína.
Rodrigo Calabria, da CCLA Advogados.